Diário da escalada

Monte Ararat


Antes de concluir seu romance O Anjo Perdido Javier Sierra escalou o seu cenário mais complexo, o Monte Ararat, um colosso de 5.165 metros no qual sua obra alcança um inesperado clímax. Neste artigo, o autor descreve em primeira pessoa por que decidiu se lançar em uma aventura de alpinismo naquela alta montanha e que poderia lhe ter custado muito caro.

Uma frase de Albert Einstein terminou me convencendo: “Não tente ser bem sucedido”, disse após receber o prêmio Nobel de Física, “tente antes ser um homem de valor”. E valor e coragem eram justamente o que eu precisava para concluir meu novo romance. A extraordinária aceitação que A Ceia Secreta recebeu internacionalmente há sete anos, os incontáveis booktours para apoiá-la pelo mundo e meu sentido de responsabilidade haviam dilatado mais que o previsto a saída de O Anjo Perdido.
No princípio de 2010 eu me preocupava, e muito, que minha nova ficção voltasse a ser fundamentada em fatos investigados in loco e que transportasse a meus leitores esse aroma inconfundível da aventura transcendente, mas verossímil... E depois de ter viajado anonimamente várias vezes para Washington DC, para a misteriosa “igreja das lápides” de Noia, para a Costa da Morte galega ou à catedral de Santiago de Compostela, me restou somente um lugar onde deveria pisar antes de entregar a minha obra para publicação: as encostas de uma montanha de 5.165 metros, na militarizada fronteira do Irã, Armênia e Turquia que durante séculos tem inspirado lendas e relatos de mistérios sem igual.  Seu nome: Ararat. O lugar em que, segundo o Gênesis (8,4), a arca de Noé “descansou” após o Dilúvio Universal.

Mas, como iria um escritor sem experiência em alpinismo e escalada explorar um lugar como esse?

Foi então que me lembrei do bom conselho do pai da Teoria da Relatividade. Armei-me de coragem. Solicitei as permissões de escalada necessárias — raras, supervisionadas sempre por militares — e me dispus a procurar um instrutor que quisesse me acompanhar. Tive sorte. César Pérez de Tudela, um dos alpinistas espanhóis mais experientes que existem, ele que é uma lenda no montanhismo, se entusiasmou com meu projeto. "Subi no Ararat em três ocasiões", me disse orgulhoso. “Mas nunca com alguém que tenha estudado o assunto da arca como você... Por que você fez isso, não é verdade?”. Asentí. Assenti. Eu já vinha, de fato, há algum tempo recolhendo informação sobre o Ağrı Dağı –nome turco que significa “montanha da dor”- e sentia verdadeira fascinação pelas Expendientes desclasificadoshistórias que se contavam nesse enclave. Em velhos documentos da CIA que se tornaram públicos, eu havia encontrado inclusive alusões a certa “anomalia no Ararat”, uma rocha com aspecto de barco captada por aviões espiões entre 1949 e 1973 e, ao que parece, só emergia do gelo nos anos de mais calor. Não era, então, de se estranhar que essa suposta nau — citada também no Alcorão, na Bíblia, por Marco Polo ou pelo historiador babilônico Beroso — me parecesse o lugar perfeito para esconder essas duas pedras "de poder" que articulam a trama do meu novo thriller. Só me faltava escalar a montanha.

Mas, um pouco antes de as permissões chegarem, aquela loucura esteve a ponto de fracassar.

Apenas três meses antes de iniciar a escalada, César foi removido do Khan Tengri, um dos pontos de mais de sete mil metros de altura no coração de Kyrgyzstán, por culpa de um problema em seu sistema cardíaco. Não era novidade que a morte rondasse aquele meu “guia” nos cumes. Em sua primeira expedição ao Aconcágua, ele esteve seis dias perdido e foi dado como morto. E em 1988, de novo nesse pico, sofreu uma experiência visionária na qual chegou a “ver” o célebre “túnel” que descrevem as pessoas à beira da morte.

Mas César é um homem forte. Recuperou-se de seu infarto ao mesmo tempo em que nossos salvo-condutos autorizavam nossa viagem para os primeiros dias de outubro. “Vocês serão os últimos a subir este ano”, nos disseram as autoridades turcas. “A partir dessa data a neve faz o Ağrı Dağı se tornar inacessível”. Sorri. No fundo, aquele atraso havia sido providencial. Primeiro, porque graças à demora da papelada, César se restabeleceu por completo, e segundo porque as cenas de ação que havia imaginado para meu romance transcorriam justamente na neve em plena “temporada vermelha” no cume.

A missão final foi integrada por quatro espanhóis: César, seu filho Bruno, o câmera de televisão Álvaro Trigueros e eu; dois curdos — um cozinheiro e um responsável pelos cavalos que subiriam nossos utensílios e provisões da escalada até o mais alto possível — e um guia de montanha turco. O plano era ascender até bem lá no alto e dali examinar os lugares nos quais outros montanhistas haviam situado os supostos restos da arca, assim como localizar as cavernas de gelo em que se desenrolaria o desenlace de O Anjo Perdido.

Rumo ao desconhecido

Cuatro españoles

No dia de nossa chegada, em 8 de outubro de 2010, foi César que me fez perceber algo.

—Você vê aquelas nuvens ali?— disse, apontando a crista daquele maravilhoso colosso. Três grandes rodas gasosas brancas, com as bordas bem definidas, tampavam seu pico eternamente nevado. — Preste bem atenção. É a tempestade de vento e granizo que se instala na parte de cima do Ararat nesta época do ano. Às vezes desaparece na primeira hora, por isso no dia que subirmos deveremos nos levantar antes do amanhecer, alcançar o cume e descermos rapidamente para que ela não nos pegue.

— Subiremos à noite? – perguntei alarmado.

Pérez de Tudela respondeu com uma expressão no rosto, como se aquilo o divertisse.

Lembrei-me então de Judith Curr, minha editora em Nova York. E de Antonia Kerrigan, minha agente literária. A essa hora ambas estariam bem protegidas em algum estande com ar condicionado na Feira de Frankfurt, anunciando que a Simon&Schuster acabava de adquirir os direitos de The Lost Angel. Se eu não ficasse de olho vivo, quem seria o anjo perdido seria eu. As duas haviam lido o rascunho da minha obra e esperavam que eu voltasse são e salvo do Ararat para colocar o ponto final. “Não sei por que você está fazendo isso”, me recriminou um bom amigo pouco antes de partir. “Os romancistas não precisam estar nos cenários de suas obras para descrevê-los. Eles os inventam e pronto. Lembre-se de Júlio Verne…” “Mas eu preciso de um grande final!”, protestei. “Você o terá. Pelo menos tente que seja só para sua obra, não para você.”

Meu amigo tinha razão. A literatura nunca precisou de aventureiros reais para descrever suas odisseias. Mas, e se a um enredo de um livro for acrescida a coragem de uma experiência real vivida pelo autor? Esse pensamento me convenceu. Animou-me a seguir. E a romântica possibilidade de tropeçar com a arca de Noé também.

— Não tão depressa! — me ordena César ao ver-me apertar o passo, com bastões de alpinista nas mãos, ao iniciar a subida. — A escalada deve ser feita em passos mais curtos, firmes. Sempre os mesmos. Assim economizará forças para quando chegar o pior e conseguirá seu objetivo sem desgastar-se.

“É como escrever um romance!”, pressentiu.

Cuatro españoles

Mas as duas noites que passamos no Ararat não me evocaram, precisamente, nenhum prazer literário. A primeira, a 3.200 metros, no acampamento base um, suportamos em meio de uma densa neblina, a dez graus abaixo de zero. A segunda foi ainda mais severa. No limite dos 4.000 metros, com o oxigênio quase ausente e as barracas assentadas sobre a neve gelada, o frio se fez insuportável. Por sorte, levantamos às duas da madrugada para nos enveredarmos no último trajeto e o esforço para não cair pelo penhasco abaixo logo em seguida nos ajudou que o calor entrasse.

— Não conquistaremos a montanha só com músculos! — quase vejo César sob seu gorro vermelho, estimulando o resto do grupo — É a mente que o faz seguir adiante!

Acreditei que ia desmaiar. Então, a 4.500 metros de altura, quando o dia despontava, vi algo que me sobressaltou: nuvens negras e velozes, elétricas, subiam até o mesmo cume que estávamos. Elas iam ficar adiante de nós! Logo depois o céu se escureceu como se estivesse se solidificando, enquanto a temperatura caiu vários graus de uma tacada só. Parecia uma cena tirada de Os Dez Mandamentos de Cecil B. DeMille!

— Aguente! — gritou César. — Pise nas minhas pegadas!

A cem metros mais acima, sem fôlego, nos detivemos para conversar. Eu já tinha feito uma ideia do tipo de inferno que queria incluir no meu romance e começava a pensar em uma retirada. César não estava tão seguro.

— Se avançarmos — ele me anunciou em voz baixa — talvez tenhamos que pernoitar no cume.

— E então... o quê? Veremos algo lá em cima? — indaguei preocupado.

— Com esta neblina, não.

— Então vamos voltar!

Os Pérez de Tudela resmungaram, mas acabaram reconhecendo o perigo. Abandonamos a escalada aos 4.600 metros, bem antes que o mal tempo dominasse a montanha por completo. E assim, com a minha retina impregnada de imagens únicas, os cílios congelados e mil ideias para transpor para o papel, iniciamos o movimento de retirada. Após onze horas ininterruptas de descida, meu rosto era a único do grupo que irradiava felicidade. Ao chegar em Dogubayazit, estava eufórico. Era pelo romance, claro! Eu o tinha! Havia visto — e experimentado — justamente aquilo que necessitava. E nervoso, no hall do hotel Isfahan, comecei a tomar notas como um louco.

— O quê? Você está feliz? — se aproximou César. — Como dizem, a montanha enfeitiça mesmo! Quando você vai escalar a próxima?

Eu o olhei olho no olho, fixamente.

— Nem sonhe com isso! — bufei, enquanto rabiscava justamente a frase com a qual mais tarde fecharia O Anjo Perdido. — A não ser, claro, que seja outro cume com arca...

E César, com um gesto parecido com o dos profetas do Pórtico da Glória compostelano, disse algo que nunca mais pude tirar da minha mente desde então:

- Nesse caso, Javier, certamente você voltará ao Ararat.